Com quantos sonhos se faz uma pessoa?
Meio nada.
Queria eu ser incolor,
Descaracterizado de cor
Ou qualquer fator externo.
Queria eu ser indolor,
Não ser vítima nem produtor
De nenhum ardor interno.
Queria eu ser meio amor,
Meio cura e meio dor
Em um único laço terno.
Queria eu ser meio flor,
Meio lindo e esplendor,
Meio espinho e inverno.
Queria eu ser meio
Nada,
Diferente de
Tudo
Que já se conhece.
Imprevisto.
Você vem,
Entra sem bater
Na minha porta
De vidro,
Faz o maior
Estardalhaço
Sem o menor
Ruído,
E ainda chega
Mudando de lugar
Todos os móveis da
Minha casa,
Minha vida,
Minha calma.
Minha sina
É ter que te olhar
Tão perto
E tão longe
E tão perto
E tão longe
E tão perto
E tão longe...
Invisível hoje.
Deixa a estante empoeirada. Não tem problema. Deixa o tapete da sala de visitas enrolado, a louça suja empilhada em cima da pia, o quadro entortado no meio do corredor. Deixa as folhas secas no quintal, a tampa do lixo aberta, a pia do banheiro pingando. Deixa a cama desarrumada, o guarda-roupa desarrumado, a pilha de livros desarrumada em cima da escrivaninha. Não tem problema. Deixa o pijama no teu corpo desanimado e o resto como está. Deixa de arrumar a casa hoje. Ela assim combina mais com a tua vida: bagunçada.
Metamorfose.
Cansei. Cansei do real, do palpável, do prático. Cansei dessa culpa maçante, dessa corda pendurada eternamente no céu, apenas esperando candidatos. Cansei do bonito, da ilusão de beleza. Cansei das mesmas notícias na tevê, no jornal, no radio, das mesmas desgraças repetidas, do mesmo desastre que já cotidiano se torna. Cansei da comoção falsa, da locomoção falsa, do falso novo. Cansei do que os olhos são capazes de enxergar.
Cotidiano.
Como todo dia, acordou às seis da manhã, meia hora mais
tarde que sua mulher. Gastou seus curtíssimos "cinco minutos de sono
extra" sentado na cama. Olhou profundamente para o nada e pensou. Pensou
sobre ontem, hoje, amanhã. Os cinco minutos que costumavam passar num piscar de
olhos, hoje custaram para acabar. Momentos de reflexão exigem mais da mente do
que dormir e, sem saber muito bem o porquê, ele estava envolto em um desses
momentos exigentes.
Imaginare.
Com sua mão direita estendida, fazia um doce movimento de carícia no simples "nada" que, naquele momento, era tudo. A típica expressão de um garoto chorão segurando as lágrimas inundava seu rosto, e ele se contentava com pouco, se contentava com algo não concreto (para os outros, não para ele). Contradizia seus pais, seus amigos e até a psicóloga do trabalho com aquelas ideias (consideradas) insanas.
Era amor. Não o amor como conhecemos depois de crescidos, mas sim um amor puro, de criança. Um amor que não tem malícias, limites, problemas. Um amor de amigo, um amor de irmão, um amor intacto, livre, e pronto para ser aproveitado. Não interessava o que os outros diziam, sabia que ninguém era capaz de ver como ele via, ninguém era capaz de ver além dos olhos. Não interessava também o que os outros fariam para tentar impedi-lo, ninguém seria capaz. Amigos imaginários são como os sonhos: estão com a gente aonde a gente vai, sempre que a gente quer, e ninguém pode impedi-los de existir, pois só nós os vemos, só nós cremos neles. Seu amigo o acompanhava pelas ruas solitárias que se encontravam no caminho entre sua casa e a casa de sua vó. O acompanhava quando seus pais estavam no trabalho e ele tinha que ficar em casa. Impedia que ele ficasse sozinho em sua solidão.
Até que o garoto cometeu o maior e mais paradoxo erro que os humanos podem cometer: Cresceu. Em um momento de reflexão, perguntou à lua:
- Até que ponto vale a pena sonhar?
E, sem uma resposta da lua, abriu mão de tudo. Abandonou seu amigo imaginário, desistiu dos sonhos. E, como todos nós fazemos, catalogou aquele período passado como "minha infância". Se viu grande e forte, mas não podia ver o mundo que acabara de deixar pra trás com toda sua imaginação. Passou a olhar com os olhos de um adulto. Passou a olhar apenas com os olhos.