Enigma.

Com quantos sonhos se faz uma pessoa?

Meio nada.

Queria eu ser incolor,
Descaracterizado de cor
Ou qualquer fator externo.

Queria eu ser indolor,
Não ser vítima nem produtor
De nenhum ardor interno.

Queria eu ser meio amor,
Meio cura e meio dor
Em um único laço terno.

Queria eu ser meio flor,
Meio lindo e esplendor,
Meio espinho e inverno.

Queria eu ser meio
Nada,
Diferente de
Tudo
Que já se conhece.

Imprevisto.

Você vem,
   Entra sem bater
      Na minha porta
                        De vidro,

Faz o maior
   Estardalhaço
      Sem o menor
                        Ruído,

E ainda chega
   Mudando de lugar
      Todos os móveis da
                        Minha casa,
                           Minha vida,
                              Minha calma.

Minha sina
   É ter que te olhar
      Tão perto
         E tão longe
            E tão perto
               E tão longe
                  E tão perto
                     E tão longe...

Invisível hoje.

Deixa a estante empoeirada. Não tem problema. Deixa o tapete da sala de visitas enrolado, a louça suja empilhada em cima da pia, o quadro entortado no meio do corredor. Deixa as folhas secas no quintal, a tampa do lixo aberta, a pia do banheiro pingando. Deixa a cama desarrumada, o guarda-roupa desarrumado, a pilha de livros desarrumada em cima da escrivaninha. Não tem problema. Deixa o pijama no teu corpo desanimado e o resto como está. Deixa de arrumar a casa hoje. Ela assim combina mais com a tua vida: bagunçada.

Metamorfose.

Cansei. Cansei do real, do palpável, do prático. Cansei dessa culpa maçante, dessa corda pendurada eternamente no céu, apenas esperando candidatos. Cansei do bonito, da ilusão de beleza. Cansei das mesmas notícias na tevê, no jornal, no radio, das mesmas desgraças repetidas, do mesmo desastre que já cotidiano se torna. Cansei da comoção falsa, da locomoção falsa, do falso novo. Cansei do que os olhos são capazes de enxergar.

Eu quero é algo diferente, hodierno, algo além dos nossos conhecimentos. Quero um sexto sentido, um sétimo, um oitavo. Quero que se invertam os papéis, que se invertam os valores. Quero que os sonhos virem realidade e que nossa realidade vire sonho, sonho distante. Quero novos ares, novos hábitos, novos hálitos, novas ideias, proporções, novos pensamentos. Quero tudo novo, tudo distinto. Quem sabe assim vire diferente o que temos agora, e então desejarei o agora novamente. 

Cotidiano.

Como todo dia, acordou às seis da manhã, meia hora mais tarde que sua mulher. Gastou seus curtíssimos "cinco minutos de sono extra" sentado na cama. Olhou profundamente para o nada e pensou. Pensou sobre ontem, hoje, amanhã. Os cinco minutos que costumavam passar num piscar de olhos, hoje custaram para acabar. Momentos de reflexão exigem mais da mente do que dormir e, sem saber muito bem o porquê, ele estava envolto em um desses momentos exigentes.

O silêncio do quarto fora então quebrado:
- Você não vem?
Era sua mulher. "Ela nunca me deixa ter em paz meus cinco minutos a mais, sempre interrompe no terceiro.", pensou ele. Dirigindo o olhar aos profundos olhos negros de sua esposa, respondeu com calma:
- Já estou indo.
Ao chegar na cozinha, reparou no "tic-tac" do relógio, nas gotas que caíam da torneira já fechada e até mesmo nos pássaros que cantarolavam doces melodias lá fora. E justo ele que nunca foi de se importar muito com o que acontecia ao seu redor, hoje parecia dar atenção para os mínimos detalhes das vidas que o rodeavam. Sentou-se à mesa e serviu-se com um pouco de café quentinho e uma pitada de açúcar. Sua esposa fez questão de servir-lhe também um pouco de amor ao passar por trás de sua cadeira e lhe marcar a bochecha com batom vermelho. Com um sorriso torto, abriu o jornal. Leu um pouco das desgraças diárias, mas, após uma ou duas notícias, percebeu que sua mente estava bem distante. Enquanto seus olhos continuavam a passar (automaticamente) pelas linhas, sua cabeça continuava a viajar por aí. Pensava no casamento. Pensava no filho que estava passando a semana na casa do amigo. Pensava na vida que havia construído ao longo dos anos e em como ela havia saído diferente do que ele um dia planejara. Lembrava da infância e da adolescência. Entretido com aquela nostalgia toda, mergulhou no tempo e nem reparou. Pôde se ver de novo com oito anos, jogando futebol na rua sem saída onde morava. Depois, passou pelos seus quinze anos e seu primeiro encontro. Vagou um pouco pela igreja onde havia casado e pelo hospital onde nascera seu filho. Teria continuado perdido nos velhos tempos se sua mulher não o tivesse alertado:
- Acorda pra vida, homem. Já são quase oito horas, tá na hora de você ir!
Ela tinha razão, se ele saísse dali agora, teria só meia hora pra chegar do outro lado da cidade. Era estranho, mas ele não queria ir, não queria trabalhar. Queria ficar em casa, trocando carícias com sua mulher. Talvez eles pudessem sair pra almoçar como nos velhos tempos, ou quem sabe ficar em casa e assistir à uma comédia romântica embaixo da coberta. Mas não dava. Desistiu da ideia utópica de fugir das obrigações uma vez na vida e foi à luta. Beijou sua mulher com sua boca cafeinada como se fosse a última vez que iria tocar aqueles lábios. Passou no espelho pra ver se estava apresentável e, por cinco segundos, olhou fundo em seus próprios olhos. Viu que era vítima da rotina que ele mesmo havia criado. "Mas quem não é?", pensou.
E assim, partiu pra mais um dia. Pode ter sido só mais um ou pode ter sido o último, mas só o que importa é que foi como o planejado.

Imaginare.

Com sua mão direita estendida, fazia um doce movimento de carícia no simples "nada" que, naquele momento, era tudo. A típica expressão de um garoto chorão segurando as lágrimas inundava seu rosto, e ele se contentava com pouco, se contentava com algo não concreto (para os outros, não para ele). Contradizia seus pais, seus amigos e até a psicóloga do trabalho com aquelas ideias (consideradas) insanas.
Era amor. Não o amor como conhecemos depois de crescidos, mas sim um amor puro, de criança. Um amor que não tem malícias, limites, problemas. Um amor de amigo, um amor de irmão, um amor intacto, livre, e pronto para ser aproveitado. Não interessava o que os outros diziam, sabia que ninguém era capaz de ver como ele via, ninguém era capaz de ver além dos olhos. Não interessava também o que os outros fariam para tentar impedi-lo, ninguém seria capaz. Amigos imaginários são como os sonhos: estão com a gente aonde a gente vai, sempre que a gente quer, e ninguém pode impedi-los de existir, pois só nós os vemos, só nós cremos neles. Seu amigo o acompanhava pelas ruas solitárias que se encontravam no caminho entre sua casa e a casa de sua vó. O acompanhava quando seus pais estavam no trabalho e ele tinha que ficar em casa. Impedia que ele ficasse sozinho em sua solidão.

Até que o garoto cometeu o maior e mais paradoxo erro que os humanos podem cometer: Cresceu. Em um momento de reflexão, perguntou à lua:
- Até que ponto vale a pena sonhar?
E, sem uma resposta da lua, abriu mão de tudo. Abandonou seu amigo imaginário, desistiu dos sonhos. E, como todos nós fazemos, catalogou aquele período passado como "minha infância". Se viu grande e forte, mas não podia ver o mundo que acabara de deixar pra trás com toda sua imaginação. Passou a olhar com os olhos de um adulto. Passou a olhar apenas com os olhos.

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“A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade.”