Pessoal.

Tem uma gaiola em meus olhos. Uma gaiola feita de medo que me impede de enxergar, me impede de ver o óbvio. E assim eu me mantenho parado, sem dar um passo pra frente ou pra trás por medo de cair em algum buraco. E se eu caísse em algum buraco, o que aconteceria?
Tem uma gaiola em meu peito. Uma gaiola feita de memórias, uma gaiola cortante que me rasga todo dia, que impede meu coração de bater como antes batia. E assim eu me mantenho ferido. E se machucados não cicatrizassem, o que aconteceria?
Eu caminhava pela estrada torta, me apoiando nas árvores que encontrava aos cantos. Eu tocava minhas melodias melancólicas pra alguém que não existe, pra alguém que eu inventei. Eu me preocupava com cada gota que chovia dos teus olhos, mas quem és tu?
Deixa, deixa que eu descubro. Deixa sangrar por essas palavras. Deixa sangrar até o fim que a verdade vem, sempre vem.

Tudo vai voltar.

Das escolhas finais.

Espalhou suas memórias pelo chão da sala. Escolheu as melhores, escolheu meticulosamente quais iriam ficar. Tinha aquela bem antiga, mal conseguia se lembrar: deitado na grama úmida do quintal, olhava os desenhos que se formavam no céu, brincava de criar. Foi pra caixinha das selecionadas. Tinha outra, tão banal quanto: tomava um banho de chuva enquanto voltava pra casa; as ruas vazias causaram-lhe uma impressão de extrema liberdade. Sozinho ali, começou a cantar suas canções prediletas. Foi pra caixinha das selecionadas.
Passou por lembranças amarguradas, e selecionou com ainda mais cuidado quais deveriam ficar. Convenhamos que foi bem racional nesse momento (uma vez agindo emocionalmente, teria descartado todas), pois sabia que algumas lástimas haviam sido de extrema importância para sua construção. Passou também pelos momentos mais gloriosos de sua vida, mas esses ele não fez tanta questão de guardar (com excessão de alguns). Não entendia bem porque, mas simplesmente não queria, não via mais sentido em manter aquelas memórias.
Uma vez terminado o trabalho, fechou sua caixinha de selecionadas, lacrou-a e viu na tampa algo escrito: "A parte boa da vida é feita de coisas simples."
Sorriu um último sorriso, deitou-se em seu ataúde e dormiu.

Fuga.

Olha Maria, é normal que o desespero te preencha agora, mas lhe imploro: não seque esse teu poço de vontade de viver, não tão cedo. Não precisas de mim pra tocar tua vida, não precisas de ninguém exceto teus próprios pés. Não deixe que tua sombra te engane, sombras são traiçoeiras.
Sabe Maria, eu bem queria permanecer aqui do teu lado, continuar te dando colo no final da tarde enquanto assistimos o sol se pôr junto com mais um dia, mas não posso prosseguir com esse teatro sem atos felizes. Os ponteiros giram e giram e giram e eu não saio do lugar, o tempo passa sem minha vida acompanhar. Não que eu não queira mais viver, mas essa vida já cansou de mim. É como se eu não fosse o ator certo, como se eu sempre demorasse mais para decorar as falas, e você sabe Maria, improviso não é o meu forte.
Um velho amigo me disse que temos nosso futuro traçado, como arquitetos planejam prédios e escritores criam estórias, e que nada nunca sai diferente do que nos foi previsto. Mas sabe, Maria, eu não concordo. Se estou onde estou, a culpa é minha e de mais ninguém. Todos têm chances de contornar os obstáculos, mas nem todos se saem muito bem nessa tarefa, e eu fui um desses. Isso não é um pedido de piedade, Maria, é só uma mera tentativa de te explicar o que está acontecendo aqui.
Só te peço para que não me encare como um perdedor se um dia nos encontrarmos novamente em algum canto desse mundo ou de outro.
Eu esperava mais disso, sabe Maria? Esperava que a vida fosse igual aos sonhos que temos quando crianças. Esperava que pudéssemos ser livres, que pudéssemos ser donos do nosso nariz uma vez que atingíssemos a maioridade. Bobagem. Quanto mais o tempo passa, mais deixamos de ser quem realmente somos para que possamos nos encaixar nesse mundo. É como se passássemos por um rígido processo de adaptação social onde aprendemos tudo que devemos fazer na hora certa.
E eu reprovei Maria, reprovei na vida. Reprovei quando eu tinha que sorrir e só queria chorar, quando eu tinha que chorar e nem me importava, quando eu não podia me importar e acabava me preocupando. Mas nem tudo foi perdido, nem tudo foi em vão: tive-te Maria, e ter-te-ei pra sempre em meu peito.
É tarde Maria, anjos batem à minha porta e já não posso evitar. Sinto a brisa enquanto me deito em meio às lágrimas agora secas. Nunca fui bom com despedidas, por isso deixo-lhe esta carta de adeus. E por mais que doa em ti, Maria, ou por mais que doa em mim, não se esqueça de viver a vida como lhe foi ensinado, como você sempre fez.
Não termine como eu, Maria, mas venha me visitar um dia.

Ciclos

Acordar; observar; chorar; acalmar; conhecer; sorrir; dormir; crescer. Acordar; reconhecer; brincar; comer; aprender; observar; temer; machucar; querer; lembrar; associar; dormir; crescer. Acordar; questionar; desejar; estudar; expor; temer; impedir; pressionar; agitar; apegar; amar; chorar; lembrar; sorrir; sentir; buscar; rebelar; revelar; acalmar; errar; observar; tentar; cursar; aquietar; dormir; crescer. Acordar; olhar; trabalhar; batalhar; enfrentar; experimentar; retocar; disfarçar; mentir; fingir; amar; ensinar; cuidar; educar; contemplar; temer; ceder; dormir; decrescer. Acordar; sentir; refletir; sorrir; caminhar; lembrar; amar; arrepender; descansar; felicitar; compreender; acalmar; contemplar; flutuar; dormir. Viver; vida, morte.

Inevitável vontade

“Deseja-me como desejo-te:
Da carne à alma, do ardor à calma;
Do amor que me ocupa e por teus lábios clama.

Deseja-me como desejo-te:
Com vontade e complacência,
Com paixão e paciência e
deleitaremos o gozo veemente.

Que teus braços busquem meus abraços
e consolidem o júbilo que pertence
àqueles que se entregam ternamente.

Que esta carícia preencha teu coração
E que se deixe levar por quem te ama.
Deseja-me como desejo-te
E se perca em minha cama.”

Dos sonhos.

Debaixo da sombria luz vermelha ele se encontrava, absorto em seus pensamentos. Caneta preta presa à sua mão direita, enquanto seu braço esquerdo se estendia ao longo da velha escrivaninha. Alí, na mesmíssima escuridão, milhares de personagens e enredos tinham sido criados e aperfeiçoados. Mas não hoje. Seus olhos claros corriam pelo quarto (ou até mesmo pela pequenina janela que se encontrava na parede logo à frente) em busca de inspiração; Não vinha. Levantava-se, andava pra lá e pra cá, ligava e desligava a televisão, o rádio, mas nada. Nenhuma idéia passava por aquela cabeça cujos cabelos, sempre tão negros, se encontravam completamente despenteados.
As palavras certas pareciam fugir do jovem como o diabo foge da cruz. Lá no alto brilhava a lua que lhe rendera tantos romances apaixonados. Nem mesmo ela era capaz de fazer aquela horribilíssima e inaceitável noite brilhar. Inquieto, debatia-se contra a parede, incapaz de entender como nenhuma palavra era capaz de se formar ao longo daquelas linhas. Nem gritos e escândalos eram suficientes para atrair-lhe alguma mísera idéia. Mentalmente desgastado e emocionalmente abalado, deitou-se. Envolto em lágrimas, sentia suas entranhas contorcerem-se. Significava o fim do mundo para ele. Talvez o maior pecado, algo imperdoável, digno de milênios sem paz.
Ainda transtornado, afundou inconsciente em um mundo cheio de inspiração. Era capaz de ver luz em todos os lugares. Mergulhado em seus sonhos, dormia aliviado, consciente de que o amanhecer lhe renderia boas páginas de eletrizantes estórias. E fez-se de novo o mundo que tanto temeu perder: Imaginação.

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“A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade.”