Querido diário,

Hoje, não lhe escreverei. Acontece que houve um imprevisto, um desvio de destino. Meu coração foi caminhar, e não encontrou o caminho previsto. Viu milhares de possibilidades de, talvez, encontrar um lar. Mas não seria o meu lar. Então, preferi ficar perdido, entre vários caminhos, e não ir à lugar algum. Eu simplesmente fiquei, desolado, procurando o caminho dela. Entre tantos perfumes, não achei meu favorito. Entre tantos sorrisos, nenhum que me tirasse do sério, como o dela fazia. E é só o que me resta. Eu, deitado nessa cama, durmo. Meu corpo vai descansar e amanhã estará pronto para enfrentar a árdua rotina que a sociedade e a falta do "algo mais" nos proporciona. Mas meu coração, esse continua lá, em repouso, sem saber por qual caminho seguir. Meu corpo sorrirá amanhã. Sim, sorrirá por pura convenção. Mas sem brilho. Esse, por sua vez, está pronto para voltar à minha boca. É só ela querer. Mas você, meu querido diário, você que acompanha isso de perto, responda-me: Será que, algum dia, ela vai querer ver o brilho de meu sorriso outra vez? Será que é só passageiro, ou será que meu coração não vai poder voltar pra casa? Ele não está pronto para mudar de vizinhança, mas a rua que leva ao seu lar está interditada.
E é por isso, querido diário, é por isso que não lhe escreverei hoje. Pois as palavras sairiam pensadas demais, sem emoção alguma. Quando meu coração encontrar o caminho de volta, prometo que os primeiros sentimentos que saírem dele estarão registrados aqui. Só não posso lhe garantir que meu coração conseguirá passar por essa dura missão. Eu torço.

Só mais uma prece

Era uma tarde de Abril de 1945 quando Romeu decidiu rezar. Sempre fora um homem religioso, mas dessa vez eram outros motivos que o deixavam de joelhos. Não rezava por dinheiro ou sucesso. A essa altura do campeonato, tinha muito mais com o que se preocupar. O tempo lhe era curto, então teria que ser o mais breve possível. Começou:
-"Senhor, tenho a completa consciência de que não sou eu quem deve decidir quem vive e quem morre, mas não tenho muitas escolhas. Aqui, é matar ou morrer, e ninguém quer optar pela segunda opção, mesmo que a primeira seja torturante. Não lhe peço para poupar-me. Se tiver que ser minha vez de partir, assim será. Apenas lhe imploro que poupe meus filhos da tristeza que é batalhar por algo que você sabe que não vai compensar. Lhe imploro que faça com que as pessoas possam ver que isso não passa de um suicído global. Porque, no fim, ninguém sai ganhando, ninguém sai glorioso e muito menos sem danos. Sabendo que o senhor vai ouvir minha prece, me retiro esperançoso. Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo, Amém."
Foi à guerra.

Insônia (3)

Pelo lado de fora da janela ele observava, assustado, o casal se amando. Nunca achou que eles fossem capazes de tal frieza. Ofegantes, os dois se enchiam de prazer sem sequer desconfiar que não estavam completamente sozinhos. Ah, se ela tivesse ao menos olhado para a janela! Benjamin continuava a observar a cena. Perplexo, não sabia o que pensar ou o que fazer. Não sabia se intervia ou se esperava para ver até que ponto aquilo chegava. Não aguentou muito. Ao ver os dois completamente nus, deu meia volta e voltou para casa. As lágrimas escorriam por sua pele áspera, mas não estava triste. Não, aquele era outro tipo de sentimento. Era raiva, angústia. Quem o visse agora diria que se tratava de um fraco. Benjamin, porém, era exatamente o oposto. Não chorava desde a morte de seu pai, quando tinha apenas 9 anos de idade, e raramente perdia o equilíbrio. Nunca ficara assim, tão desiludido. Sabia que o casamento não estava indo tão bem, mas nem sequer imaginava que Clara fosse capaz de tal barbaridade. Pensou em ligar para sua mãe, pensou em ligar para sua esposa, mas nada fez. Esperou. Olhou para o relógio e os ponteiros marcavam 22:54. Apesar de tudo, estava caindo de sono. Prometeu à si mesmo que não deixaria isso assim. Vingança.

Insônia (2)

Enfurecido, não hesitou ao cravar o facão de seu tio-avô no lado esquerdo do peito de Augusto. Nunca fora assim, tão inconsequente, mas amava sua mulher acima de tudo e de todos. Clara era a única pessoa que o fazia agir de forma inusitada e inesperada, mas nunca pensou que algum dia chegaria à esse extremo. Obsessivo: a melhor palavra para definir Benjamin. Não importava o quão amigo Augusto sempre fora. Tudo fora em vão. A tragédia estava alí e, em pouco tempo, viria o remorso. E veio.
Tudo seria diferente agora. Sem mulher e sem amigo, sozinho estava. A sala de estar nunca tinha se tornado um cômodo tão obscuro, ou, no mínimo, incômodo. Se não fosse pela inoportuna noite em que descobrira tudo, nada disso teria acontecido. Ele não teria que aguentar o fardo de saber e, agora, não teria que agir como agiu. Num momento de tensão mesclado com lágrimas, a luz se apagou. O vento forte soprou janela adentro e uma visão distorcida de sua vida lhe passou pela cabeça. Nada servia agora. Os anos que passou estudando não lhe ensinaram a lidar com situações como essa. O tempo em que passou trabalhando em sua clínica não lhe mostrou como agir diante disso.
No escuro, torcia para simplesmente ser acordado por Clara e ouvi-la dizer "Acorda, querido, tá tudo bem! Foi só um pesadelo!". Mas a luz voltou e, com ela, o medo.

Insônia

Amedrontado, pensava em algum jeito de contornar aquilo. Nunca estivera em alguma situação parecida antes. Diante do cadáver, que agora exalava um cheiro horrível, não conseguia encontrar soluções para o problema. Desejava que o tempo fosse mais flexível. Desejava poder mudar o passado, mas não podia. Prendeu a respiração e colocou o morto em seus ombros. Na cozinha, espreitou pela janela se havia algum sinal de vida na casa ao lado. As luzes apagadas indicavam sinal verde. Avançou. Já no quintal, ouviu um barulho vindo do interior de sua casa: a campainha. Desesperado, correu frenéticamente. Seu corpo se arrepiou inteiro em fração de segundos, e seu coração disparava acelerado. Secou algumas gotas de suor frio que lhe escorriam pelo rosto e abriu a porta do hall de entrada. Era a Dona Célia da casa da frente, uma senhora simpática, que cuidava dos netos enquanto sua filha trocava o trabalho por mais uma garrafa de vodka. Com ar de espanto, a velhinha, que trajava um pijama xadrez, se apressou em perguntar:
-Está tudo bem? Ouvi gritos que pareciam vir daqui.
Benjamin logo respondeu:
-Está tudo certo, deve ter sido um de meus gatos.
Nem sequer gatos o jovem tinha. Ao ver que Dona Célia se afastava, voltou para o quintal. Pronto para terminar o "serviço", mais um espanto: Não conseguiu encontrar o cadáver. Procurou por todo o lote, mas não consegui encontra-lo. Desistiu.
Nunca mais conseguiu dormir.

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“A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade.”