Invisível hoje.

Deixa a estante empoeirada. Não tem problema. Deixa o tapete da sala de visitas enrolado, a louça suja empilhada em cima da pia, o quadro entortado no meio do corredor. Deixa as folhas secas no quintal, a tampa do lixo aberta, a pia do banheiro pingando. Deixa a cama desarrumada, o guarda-roupa desarrumado, a pilha de livros desarrumada em cima da escrivaninha. Não tem problema. Deixa o pijama no teu corpo desanimado e o resto como está. Deixa de arrumar a casa hoje. Ela assim combina mais com a tua vida: bagunçada.

Metamorfose.

Cansei. Cansei do real, do palpável, do prático. Cansei dessa culpa maçante, dessa corda pendurada eternamente no céu, apenas esperando candidatos. Cansei do bonito, da ilusão de beleza. Cansei das mesmas notícias na tevê, no jornal, no radio, das mesmas desgraças repetidas, do mesmo desastre que já cotidiano se torna. Cansei da comoção falsa, da locomoção falsa, do falso novo. Cansei do que os olhos são capazes de enxergar.

Eu quero é algo diferente, hodierno, algo além dos nossos conhecimentos. Quero um sexto sentido, um sétimo, um oitavo. Quero que se invertam os papéis, que se invertam os valores. Quero que os sonhos virem realidade e que nossa realidade vire sonho, sonho distante. Quero novos ares, novos hábitos, novos hálitos, novas ideias, proporções, novos pensamentos. Quero tudo novo, tudo distinto. Quem sabe assim vire diferente o que temos agora, e então desejarei o agora novamente. 

Cotidiano.

Como todo dia, acordou às seis da manhã, meia hora mais tarde que sua mulher. Gastou seus curtíssimos "cinco minutos de sono extra" sentado na cama. Olhou profundamente para o nada e pensou. Pensou sobre ontem, hoje, amanhã. Os cinco minutos que costumavam passar num piscar de olhos, hoje custaram para acabar. Momentos de reflexão exigem mais da mente do que dormir e, sem saber muito bem o porquê, ele estava envolto em um desses momentos exigentes.

O silêncio do quarto fora então quebrado:
- Você não vem?
Era sua mulher. "Ela nunca me deixa ter em paz meus cinco minutos a mais, sempre interrompe no terceiro.", pensou ele. Dirigindo o olhar aos profundos olhos negros de sua esposa, respondeu com calma:
- Já estou indo.
Ao chegar na cozinha, reparou no "tic-tac" do relógio, nas gotas que caíam da torneira já fechada e até mesmo nos pássaros que cantarolavam doces melodias lá fora. E justo ele que nunca foi de se importar muito com o que acontecia ao seu redor, hoje parecia dar atenção para os mínimos detalhes das vidas que o rodeavam. Sentou-se à mesa e serviu-se com um pouco de café quentinho e uma pitada de açúcar. Sua esposa fez questão de servir-lhe também um pouco de amor ao passar por trás de sua cadeira e lhe marcar a bochecha com batom vermelho. Com um sorriso torto, abriu o jornal. Leu um pouco das desgraças diárias, mas, após uma ou duas notícias, percebeu que sua mente estava bem distante. Enquanto seus olhos continuavam a passar (automaticamente) pelas linhas, sua cabeça continuava a viajar por aí. Pensava no casamento. Pensava no filho que estava passando a semana na casa do amigo. Pensava na vida que havia construído ao longo dos anos e em como ela havia saído diferente do que ele um dia planejara. Lembrava da infância e da adolescência. Entretido com aquela nostalgia toda, mergulhou no tempo e nem reparou. Pôde se ver de novo com oito anos, jogando futebol na rua sem saída onde morava. Depois, passou pelos seus quinze anos e seu primeiro encontro. Vagou um pouco pela igreja onde havia casado e pelo hospital onde nascera seu filho. Teria continuado perdido nos velhos tempos se sua mulher não o tivesse alertado:
- Acorda pra vida, homem. Já são quase oito horas, tá na hora de você ir!
Ela tinha razão, se ele saísse dali agora, teria só meia hora pra chegar do outro lado da cidade. Era estranho, mas ele não queria ir, não queria trabalhar. Queria ficar em casa, trocando carícias com sua mulher. Talvez eles pudessem sair pra almoçar como nos velhos tempos, ou quem sabe ficar em casa e assistir à uma comédia romântica embaixo da coberta. Mas não dava. Desistiu da ideia utópica de fugir das obrigações uma vez na vida e foi à luta. Beijou sua mulher com sua boca cafeinada como se fosse a última vez que iria tocar aqueles lábios. Passou no espelho pra ver se estava apresentável e, por cinco segundos, olhou fundo em seus próprios olhos. Viu que era vítima da rotina que ele mesmo havia criado. "Mas quem não é?", pensou.
E assim, partiu pra mais um dia. Pode ter sido só mais um ou pode ter sido o último, mas só o que importa é que foi como o planejado.

Imaginare.

Com sua mão direita estendida, fazia um doce movimento de carícia no simples "nada" que, naquele momento, era tudo. A típica expressão de um garoto chorão segurando as lágrimas inundava seu rosto, e ele se contentava com pouco, se contentava com algo não concreto (para os outros, não para ele). Contradizia seus pais, seus amigos e até a psicóloga do trabalho com aquelas ideias (consideradas) insanas.
Era amor. Não o amor como conhecemos depois de crescidos, mas sim um amor puro, de criança. Um amor que não tem malícias, limites, problemas. Um amor de amigo, um amor de irmão, um amor intacto, livre, e pronto para ser aproveitado. Não interessava o que os outros diziam, sabia que ninguém era capaz de ver como ele via, ninguém era capaz de ver além dos olhos. Não interessava também o que os outros fariam para tentar impedi-lo, ninguém seria capaz. Amigos imaginários são como os sonhos: estão com a gente aonde a gente vai, sempre que a gente quer, e ninguém pode impedi-los de existir, pois só nós os vemos, só nós cremos neles. Seu amigo o acompanhava pelas ruas solitárias que se encontravam no caminho entre sua casa e a casa de sua vó. O acompanhava quando seus pais estavam no trabalho e ele tinha que ficar em casa. Impedia que ele ficasse sozinho em sua solidão.

Até que o garoto cometeu o maior e mais paradoxo erro que os humanos podem cometer: Cresceu. Em um momento de reflexão, perguntou à lua:
- Até que ponto vale a pena sonhar?
E, sem uma resposta da lua, abriu mão de tudo. Abandonou seu amigo imaginário, desistiu dos sonhos. E, como todos nós fazemos, catalogou aquele período passado como "minha infância". Se viu grande e forte, mas não podia ver o mundo que acabara de deixar pra trás com toda sua imaginação. Passou a olhar com os olhos de um adulto. Passou a olhar apenas com os olhos.

Entre mortes e esperança.

Eu podia jurar que teria um fim. Enquanto eu caminhava pela longa estrada, me vinham à mente algumas memórias. Memórias simples, aparentemente insignificantes: uma foto, uma música, um olhar. Um olhar; aquele olhar. O dia em que minha vida virou do avesso com aquele misto de paixão e timidez. E aquela pele macia roçando a minha. Aquele cheiro de café se misturando ao cheiro de cigarro. Algumas outras memórias errôneas, sem sentido. E enquanto os pensamentos enchiam minha cabeça, minhas pernas se moviam, quase que automaticamente, buscando o fim, o fim daquela escuridão, o fim daquela estrada que parecia aumentar dois quilômetros a cada um que eu andava.
Andava em meio aos quase mortos, aos fingidos. Era quase uma ofensa me sentir diferente deles; nossas situações eram as mesmas. Éramos pessoas correndo atrás de um propósito, um propósito para continuar. Éramos pessoas perdidas num ciclo infinito onde andávamos à procura de motivos para continuarmos andando. Mas eu jurava que teria um fim.
Passei por uma placa maltratada pelo tempo, uma placa que continha algumas palavras. Mas eu era capaz de ver frases ali, textos. Textos que me lembravam a luz, não só do dia, mas também dos lindos olhos de alguém. Algumas palavras perdidas me davam forças pra continuar caminhando ao ativarem lembranças de um tempo bom. Esperança sempre foi meu forte. Na verdade, acreditar no improvável sempre foi meu forte.
Até que, de uma hora pra outra, fraquejei. Encontrava-me de joelhos, não sei se por sede, fome, ou alguma dessas necessidades básicas. Minha fraqueza já me pregava peças:
- Não vê que estamos sem saída? - reclamava minha mente.
- Sempre há uma saída. - eu retrucava.
- Você sabe que não é verdade. Você sabe que algumas guerras simplesmente não são ganhas. Perdemos essa, vamos voltar.
E com a insistência que era minha de praxe, com a birra que guardo em mim desde criança, resolvi não dar ouvidos ao meu eu. Como se algo maior me aguardasse, continuei. Ao olhar para os lados percebi que estávamos todos assim. Caminhávamos contra nossa vontade, simplesmente pela vontade de ir contra os fatos, pela impossibilidade de aceitar. Negávamos, negávamos para nós mesmos a verdade que não condizia com nossas vontades.
Após dias de caminhada, era fácil ver alguns desistindo de continuar com a insanidade. Era fácil olhar pro lado e ver tudo em preto e branco ou em algum tom que me lembrasse vida. Ah, vida... Era atrás dela que eu estava correndo. Irônico era o modo como eu o fazia: desvivendo. Era como rasgar a pele do teu braço direito pra com ela cobrir a ferida do braço esquerdo. Era como estancar uma ferida e mergulhar em outra. Já não fazia mais sentido. Não fazia sentido nem mais para meu segundo "eu" que negou os pensamentos do primeiro. Ainda assim eu prosseguia com minha fé cega.
E caminhei ali, eternamente, na estrada da angústia. Eu poderia jurar que teria um fim. Mas minha mente estava certa. Aquela estrada não tinha uma saída simplesmente por não acabar. Um eterno começo-e-meio no qual eu me perdi tentando me encontrar.

Enchente.

Chove.
Chove lá fora e chove aqui dentro.
Chove pra espantar o calor e chove pra apagar a alegria.
Chove pra matar a sede e chove pra matar as esperanças.
Chove porque tem que chover e chove pra me deixar confuso.
Chove pra encher os rios e chove pra encher meus olhos.
Chove pra sobrevivência e chove pro desejo de partir.
Chove lá fora e chove aqui dentro. Dentro de mim.

Mas eu sei que depois da chuva sempre vem o sol.

Ninguém sabe.

Partimos cedo, quase de madrugada. Fazia frio e o sol ainda não aparecia por inteiro no horizonte. Viajamos entre as poeiras e as sobras em busca da felicidade. Tínhamos ouvido falar muito dela e queríamos conhecê-la. Seguimos cada coordenada, cada receita. Tínhamos essas tais "regras" para obedecermos e as obedecemos à risca. Não ultrapassamos nenhum dos limites, andamos com muita calma.
Depois de milhões de passos, estávamos mais próximos. Os céus gritavam em tons alaranjados, os pássaros voavam com toda a leveza possível, tudo parecia tão certo. Até que surgiu algo; algo que nos impedia de seguir em frente; algo que nos impedia de alcançar a tão cobiçada felicidade. Um buraco. Profundo, escuro, impossível de atravessar. O pensamento de “o que eu fiz de errado?” inundou nossas mentes. E ali estávamos nós, nos entreolhando em busca de respostas. E ficamos ali, parados, apenas esperando pra ver quem desistiria primeiro.
E, sem palavras, sem sinais, nós dois desistimos. Voltamos pela longa estrada da vida. Voltamos de braços abertos às nossas rotinas, aos nossos dias sempre entediantes, às nossas normalidades insanas. Voltamos para as poeiras e as sobras. Seguimos pela sombra, pelo caminho mais fácil e seguro.

Hoje olho pra trás e me pergunto: o que teria acontecido se tivéssemos arriscado atravessar aquele buraco? Quantas vezes não nos limitamos a ficar em apenas uma parte das estradas de nossas vidas por medo?

Ninguém sabe.

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“A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade.”