Ele e a cidade.

A sola do seu antigo all-star maltratava o áspero asfalto sempre que ele dava mais um passo, e adicionava mais um kilômetro, metro ou centímetro à sua vida. A desgastada vida que levava desde que saiu de casa, procurando independência e pensando poder usufruir do livre-arbítrio. Não demorou muito até descobrir que o mesmo não existe, não sempre.

A sede de revolução, o desejo de mudança, a necessidade de evolução! A igualdade não é uma realidade, mas os jovens sonham. E têm o excesso de energia suficiente para confrontar aqueles que defrontam suas fantasias.

Já passava da meia-noite e ele desfilava sozinho pelas ruas, revoltando-se contra o atual e desigual estado. Desigualdade, algo que nunca suportou. Em sua cabeça, milhares de pessoas o seguiam, inovando e transformando uma série de injustiças. Incorporava o clima, debatia, ameaçava, gritava!

Para um ganhar, alguém tem que perder. Inaceitável condição capitalista, consolidando riqueza excessiva para uns e usando outros como forma de lucro. Suas desculpas não condizem! Direitos iguais, não é isso que eles dizem?

Quase vencendo a guerra, se lembrou que era hora de descansar. Sua imaginação se apagou quase que instantaneamente. Procurou algum lugar tranquilo e tentou dormir. Agora sim ele poderia sonhar sem ser visto como um louco.

Afinal, todos sonham, mas poucos são aqueles que buscam transformar o sonho em realidade.

Amanhã ele terá uma nova revolução para começar.

O último pôr-do-sol

- Sente esse cheiro? - Perguntou, olhando diretamente aos grandes olhos verdes de Emanuele.
- Que cheiro, Miguel? - Disse a garota.
- Esse cheiro de saudade saciada. Eu não vinha à esse lugar há muito tempo, pelo menos não em sua companhia. Desejei tanto, pedi tanto que me fosse concedido um ultimo minuto ao seu lado, com essa visão.
Lágrimas encheram os olhos do jovem, que agora estavam direcionados ao sol que se punha entre as montanhas. Apreensiva, ela tratou de secá-las, agora que rolavam pelo rosto dele.
- Nunca te vi chorando, Miguel. O que se passa? - Disse Emanuele.
De fato, nunca havia visto o garoto chorar, em anos de amizades. Virando-se à ela, ele respondeu:
- Perdão, Manu. - era o apelido carinhoso pelo qual Emanuele sempre era chamada - É que você partirá ao amanhecer, e não sei quando nos veremos de novo. Não pude evitar que meu coração gritasse e deixasse transparecer a tristeza que sinto com tua partida. Tantos anos juntos, dividindo inúmeras experiências, passando por poucas e boas... É impossível não sentir falta, e sei que sentirei, muita!
Irrompeu-se um silêncio que permaneceu alí pelos próximos cinco minutos. O sol já se punha quase por completo, e a lua começava a dominar o céu. Dia de lua cheia. Miguel costumava comparar a grande estrela com os olhos de Manu. Dizia que eles eram "uma reprodução menor e esverdeada" da lua. Manu interrompeu o silêncio:
- Solucei inúmeras vezes ao pensar em ficar longe de ti. Infelizmente, é inevitável. Consegui me acalmar quando lembrei que vou te carregar sempre comigo, no meu coração, independente da distância que nos separe. E além do mais, eu lhe escreverei, amigo, e lhe farei visitas de vez em quando.
Nenhuma palavra parecia adiantar, as lágrimas continuavam rolando pelo rosto de Miguel.
- Tá na nossa hora, Manu. Vamos! - Disse, levantando subitamente.
A garota levantou também e ficou cara a cara com ele. Os olhares se entrelaçavam e os dois pareciam hipnotizados. Ela era considerávelmente menor que ele, o suficiente para ter que inclinar a cabeça para tras na tentativa de olha-lo nos olhos quando estivessem muito pertos um do outro. Como se aquela fosse a última vez que eles iriam se ver, ele acariciou o rosto dela. Os lábios ressecados de Miguel se uniram com os grossos lábios de Manu. E ali permaneceram pelos próximos dez segundos, até o momento ser interrompido pela preocupação do jovem:
- Vamos, Manu. Tá ficando tarde, se você não voltar pra casa antes do céu escurecer completamente, seu pai me mata!
E os dois foram.

Ao amanhecer, Emanuele foi para terras distantes, e Miguel ficou. O jovem assistiu ao pôr-do-sol ali, naquele mesmo lugar, durante todos os dias de sua vida, desde a partida de sua amiga, que na verdade era sua amada. Aguardava com afinco o retorno de Manu, mas essa nunca voltou. Leu durante noites e mais noites a carta de despedida que a jovem deixara à ele antes de partir. A última carta.

E ele nunca deixou de amá-la.

Agorafobia.

"Eu lhe explicaria, se soubesse como. Era como se algo fosse me acontecer sempre que eu estivesse longe. Afetava o meu dia-a-dia completamente, como se eu nunca mais fosse voltar ao normal. As pessoas já estavam me vendo como um estranho. Era difícil me socializar por vontade, a aflição me preenchia, me comia vivo. E foi por isso que eu larguei o mundo, e o mundo consequentemente me largou. Eu só queria ficar dentro.
Nunca parei de observar o que acontecia lá fora, como as pessoas se moviam cada vez mais rápidas, como o mundo evoluía, ou pelo menos achava que evoluía. Vocês já repararam como as pessoas costumam fazer a mesma coisa, todos os dias, inconscientemente? E por mais horrível que pareça, todos caem nessa rotina. É realmente raro achar alguém que escape dela. Eu não posso dizer que sou um desses pois não sou. Meus dias eram todos iguais. Absolutamente todos! Eu só me preocupava com uma coisa: ficar dentro.
Eu nunca ousei. Sempre fui um sonhador, mas nunca ousei. Não ousei porque eu não poderia ousar, nem se quisesse. Algo me prendia, como fortes correntes. Puxavam meu pé, sempre. Por mais livre que eu fosse, nunca pude usufruir de liberdade. Ás vezes penso como minha vida seria se eu tivesse aproveitado as chances. Mas tinha essa corrente, sabe? Meu subconsciente, minha prisão. Lá fora não era pra mim, e por isso eu estava dentro. Eu sempre fiquei dentro.
Algo me diz que hoje é o meu ultimo dia. Já estou velho, já estava mais do que na hora. Se realmente for, partirei sem medo. Ao menos eu gostaria de me orgulhar de algo. Ao menos eu gostaria de realizar algo, sabe? Mas tudo bem, nem eu vou ser em vão. Pelo menos pude me controlar com minha falta de controle, e eu vou continuar dentro.
Dentro de casa."

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“A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade.”